Andar pelo centro da cidade de São Paulo é encontrar um mapa de subnotificações de vida e sobrevidas sem habitação



 –Minha casa é ali! 
O lugar em questão se trata da fachada de uma das padarias mais renomadas da cidade de São Paulo. O bairro é a República. Passou-se o tempo e um mercado da rede mexicana OXXO passa a dar o novo visual à residência de Vanildo*. Vivendo há 15 anos nesta -  e anteriormente de pães tão imponentes quanto -  fachada de anúncios imponentes sobre as ofertas do dia, o senhor de quase 60 anos passa parte do seu dia em busca de mercadorias. Essas são revendidas em brechós improvisados nas calçadas largas da avenida tangentes à Avenida Ipiranga. 

 


Vanildo não está só. Ele só é uma das pontas deste recorte espacial que se constrói em uma cidade marcada por uma verticalidade em consonância com aqueles que tentam se formar em uma vida marcada pela horizontalidade das ruas e das calçadas. 

Mais adiante estava Daniel*, o qual foi o elo de contato com Vanildo*. Ele se mesclara  às árvores adjacentes a farmácia pedindo para aqueles que passassem que ouvissem seus pedidos por sabonete, pasta de dente e barbeador. Um ouvido chegou a ele e pode contar que vivia nas ruas há cinco anos. No braço, carregava o nome Andreia em letras garrafais. 

 — Quem é Andreia? 
 — Minha mãe.
 — Tem ainda contato com ela? 
 — Não. - como se o motivo do meu contato fosse de alguma forma expô-lo.

A desconfiança foi a bússola durante todo o diálogo. Este não durou mais do que meia hora. Precisava mesmo da sacola com sabonete, desodorante, lâminas de barbear e escova de dentes. 

 —Sabe o que gostaria de pedir também: teria como comprar um cigarro e uma pinga? 
Negociamos somente a compra do cigarro, mas ele lembrou que faltavam chinelos a ele, mas que seguiria sem eles mesmo. Antes disso, cumprimentou Vanildo e logo em seguida seguiu em direção à Praça da República, sentido Centro.         

Ao longo do bairro de Campos Elíseos, é possível encontrar Felipe* arrumando sua moradia improvisada. Vive na rua e se engessou ao contato assim como a vida o engessou com ele. Arrumava um espaço em frente a um dos comércios existentes na rua Barão de Campinas. O local possui sofá, pequenos móveis, colchão e, até mesmo, restos piso vinílico que o anfitrião varria. Telhados e paredes do que ele chamava de ‘barraco’ eram inexistentes. A aproximação se dera de maneira receptiva, até ser questionado um pouco mais sobre há quanto tempo vivia ali.
—Não gosto de conversar, não. Me desculpa! Desejo boa sorte no seu trabalho. Que ‘Deus’ te abençoe.

Felipe já tinha conseguido a marmita do dia, enquanto arrumava o seu lar. No relógio, o silêncio era necessário, pois marcava o horário do almoço. 
Na rua Helvétia, na tarde do dia seguinte, foi possível encontrar outro Felipe*. Carregava um colar de contas azuis adornando o pescoço. Sua moradia improvisada, diferentemente daquela projetada pelo primeiro Felipe*, possui paredes de lona de saco de lixo. Comentou que vivia ali mesmo, em um local marcado pela dispersão da Cracolândia, região conhecida em São Paulo por movimentar o consumo e o comércio de crack. 
Nos arredores da mesma rua, a Praça Princesa Isabel se aproxima bem movimentada. O segundo Felipe* é um resquício do contingente que teve sua migração marcada para este  local, após a reintegração de posse, promovida pela prefeitura da capital de São Paulo, durante o mês de outubro, na rua Helvétia e na alameda Dino Bueno. 

Já era noite, na Rua Augusta, quando Miss ‘Karolayne’* ofereceu um pedaço de metal dourado torcido como um anel. 

 —Que lindo anel!  — apontei.
 — É seu, então! Coloca assim… 

E o anel foi ajustado ao meu dedo sem nem mesmo haver hesitação. Em seguida, disse que se sentiu bem por se fazer audível naquele dia. Até o momento, as recusas dos ouvintes se somaram à proporção do casaco em que estava quase que embrulhada. Por trás dele, havia uma tatuagem próxima ao coração, com uma flecha e o nome do namorado com quem se relacionara na cadeia, atravessando-o. 

 —É Caio!  — era o mesmo do meu companheiro na época. 

 —Moro por aqui. O Centro está muito perigoso. Prefiro ficar sozinha. Ainda mais que eu sou LGBT. Tomo banho na Casa Amarela e fico ali perto da Riachuelo.  

Miss Karolayne* é uma mulher trans em situação de rua.

Fomos ao mercado e o pedido principal de doação não se distinguiu daquele feito por Daniel*, da Avenida Ipiranga. Produtos de higiene, como sabonetes, desodorantes e creme dental foram os selecionados. O cigarro e uma caixa de bombom apareceram como pedidos bônus. Mais uma vez houve negociação e o segundo item se revelou mais necessário. 

Miss tentou adoçar a conversa comentando sobre o desejo de ter feito Moda, mas já era tarde: tanto o comércio, quanto ela e quanto todas as outras pessoas que estavam ali se fechariam na confidencialidade de seus universos. A saída de Miss com uma sacola, sem ter sido abordada pelos seguranças, foi um rasgo no tempo. Fechou-se e ela estava pronta para encontrar novos transeuntes para revelar novos segredos. 

A arquiteta e pesquisadora brasileira Raquel Rolnik disserta em seu livro O que é a cidade? que a formação dos centros urbanos surgem como escrita. Nas cidades, a produção e fixação da memória são uma constante, de modo a formar o alfabeto essencial à construção das palavras, frases, textos e livros. Daniel, Vanildo, Miss, Felipes e tantos outros parecem ainda preencher os espaços sem caracteres, em uma cidade a qual ninguém “lê” até o fim.


* Para preservar a identidade das fontes, os sobrenomes foram suprimidos ou trocados pelos codinomes.


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  O fio_ continua 


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